Elegância e Bom Gosto*

Quando alguém canta “Só sei falar quando canto”, como Sallim em “Bom Pra Mim”, é esperado que não andem longe os problemas típicos de pessoas que vivem de ou para a escrita. Por exemplo, em “Outra Vez”, a dificuldade de articular o que se quer dizer reside não apenas na preguiça de quem só escreveu uma canção, mas também num meio de comunicação que se revela deficiente: “Passa mais um Verão / E só fiz esta canção / E metade do refrão é metade não dizer”. Para escrever uma boa canção é requerido que se deixe metade por dizer, que se escondam coisas; não é sem surpresa, por isso, que se ouve logo depois: “Eu vou morrer, um dia / Sem saber o que sinto”. Apesar de as canções poderem perdurar, se são a única maneira que esta pessoa tem de comunicar, o acumular de segredos acabará, eventualmente, por ter consequências.

No disco A Ver o que Acontece há outros problemas comuns a quem vive de escrever, como encontrar temas que justifiquem a escrita. Em “Hoje Fico em Casa”, o medo da morte volta a aparecer, precisamente associado à ausência de temas sobre os quais cantar (e, logo, à ausência de coisas para dizer): “As ondas a bater / Já sei onde é que acaba / Tenho medo de morrer / Vou mais fundo / Assim é que me afundo / Não tenho nada para dizer”. Depois, repisando o assunto, a possibilidade de redenção surge com a ideia de uma canção que “esteja bem”: “Mais uma noite alone / Sem cenas para cantar / O dia já passou / E amanhã vai ser igual / A ver o que acontece / À espera que aconteça / E se a canção está mal / Não sei se vale a pena”. Sendo certo que se a canção falhar não resta nada, também não há alternativa a arriscar, ou seja, a cantar mais (a ir “mais fundo”). O curioso é que a correcção não depende de alterar o que se diz, apenas de acertar a maneira de interpretar a canção; será por isso que existem duas versões distintas desta canção (à segunda acrescenta-se a descrição “piano”), como se a cantora não conseguisse decidir qual a mais adequada; soando as duas bem, mantenham-se, não vá uma estar mais certa do que a outra.

A coincidência de este disco sair na mesma semana em que são conhecidas as canções candidatas ao Festival da Canção estabelece um contraste óbvio: um conjunto de pessoas, com duas ou três excepções, lutam com a suposta desadequação entre a musicalidade e a língua portuguesa enquanto Sallim constrói um conjunto de canções onde essa desadequação é inexistente, tornando possível afirmar que escrever boas canções em português não é uma questão de trabalhar a materialidade ou a plasticidade da língua, nem de encontrar temas universais que nos toquem, mas tão só uma questão de elegância e bom gosto. No caso de Sallim é ainda mais evidente, pois estas qualidades não decorrem das canções; estas soam tão perfeitas porque a elegância e o bom gosto são virtudes da própria cantora: se só fala quando canta, então as suas virtudes ressoam nas canções, seja em que versão for.

* Publicado originalmente no Jornal de Leiria, edição nº 1803, de 31 de Janeiro de 2019.