Sem-Vergonha*

A crítica internacional considerou o disco de estreia dos Shame, Songs of Praise, um início de carreira auspicioso. Escreveu-se sobre as referências musicais do punk inglês de finais de setenta ao rock de Manchester de final dos anos oitenta, fazendo-se também notar as mais recentes, nomeadamente o rock do virar de século. Numa altura em que a nostalgia vende ao desbarato e serve de desculpa para recuperar qualquer coisa, esta descrição da banda britânica não parece promissora. Podendo cair-se na tentação de olhar para estas canções apenas como pontes para lugares quase esquecidos, elas espelham, contudo, angústias bem mais modernas.

O tom de escárnio que paira no disco mantém-nos na dúvida: até que ponto devemos levar estas histórias a sério? A descrição do vocalista, Charlie Steen, em «One Rizla», sugere que o que se diz é muito sério, que não estamos em local onde as aparências contem: «as minhas unhas não estão arranjadas, a minha voz não é a melhor que já ouviram»; logo a seguir, para que não restem dúvidas, canta: «não sou grande coisa de se ver, nem grande coisa de se ouvir, mas se pensam que gosto de vocês estão bem enganados». A piada consiste em realçar a contradição: não fazem a mínima cedência ou compromisso estético mas, ao mesmo tempo, e a cada oportunidade, sublinham que o que dizem não é relevante.

As palavras são, aliás, problemáticas. Em «Dust on Trial», pergunta-se: «Qual é o objectivo de conversar se já foi tudo dito?» Responde-se que «na terra de balbúrdia genuína, conhecida apenas pelos sábios, a satisfação é devorada, dominada e desprezada», o que deixa antever que a conversa, a arma dos sábios, esgota o prazer.

Além disso, as palavras conduzem ao relativismo — a quantidade enorme de informação de que dispomos hoje insinua que qualquer opinião pode ser defendida. Em «The Lick», como resposta, ouvimos repetidamente que procuramos numa canção algo com que nos possamos relacionar e não apenas mais assuntos para debater, o que propaga o adágio, outra vez muito popular, de que discutir arte desgasta o prazer sensorial que dela advém. Falar é claramente preterido em relação a fazer coisas e é por isso que, em «One Rizla», se diz que é preferível «ser amado a estar triste»: amar é uma acção e estar triste uma consequência de conversar.

Menos românticos e alheados do que dão a entender, os Shame usam truques velhos para lidar com problemas modernos: novas maneiras de consumir música, de nos relacionarmos ou de nos sentirmos relevantes. Para eles, como para muitos artistas que os precedem, há a esperança de que uma canção possa responder a tudo, sem explicações ou adendas; enquanto ela não aparece, vão-se fazendo tentativas.

*Publicado originalmente no Jornal de Leiria, edição nº 1759, de 29 de Março de 2018.